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A vida de quem fica

Uma mulher vai até Buda com o filho morto nos braços e suplica que o faça reviver. Buda diz a ela que vá a uma casa e consiga alguns grãos de mostarda. Mas, para trazer de volta a vida do menino, esses grãos devem ser de uma casa onde nunca morreu ninguém. A mãe vai de casa em casa, mas não encontra nenhuma livre da perda.
A parábola budista explora a lição mais óbvia e mais difícil da vida. A dificuldade de encarar o fim como parte da existência é o que faz do luto uma experiência tão assustadora. “A morte é sempre vista como um acidente de percurso ou um castigo divino”, diz a psicóloga Clarice Pierre, especializada no atendimento de doentes terminais. Desde a infância o ser humano não é treinado para perder, mas para ter, acumular. “Os pais protegem os filhos das frustrações, e perder é essencial para entender que nada é permanente. E me refiro a perder desde jogos, até objetos e pessoas”, diz Clarice.
Se o desapego budista é uma utopia, a preparação para encarar a morte de forma menos traumática é possível, e começa mesmo na infância. “Criança pode ir a velório e receber respostas honestas sobre a morte, em vez de explicações fantasiosas, como a de que a pessoa viajou ou virou uma estrela.” No dia a dia, é preciso tratar as perdas como parte da vida. “Ensinar sobre a finitude ajuda a objetivar a existência, reduzindo a angústia existencial.”
Os sintomas do luto são divididos em fases: choque, negação, raiva, depressão e aceitação. Nesse processo, a pessoa experimenta desinteresse pela vida, culpa, baixa auto-estima, angústia, revolta. A duração e a intensidade desses sentimentos vão depender do histórico de perdas da pessoa, e também do grau de relação com quem morreu (a perda mais dura seria a de um filho, pois quebra um ciclo “ilusoriamente previsível”) e do tipo de morte. “Nas mortes traumáticas, acidente, suicídio, assassinato, pode haver uma fase de negação mais prolongada, a culpa e a revolta podem aparecer com mais intensidade”, diz a psicóloga Maria Helena Bromberg, do 4 Estações, um centro de pesquisas sobre luto e atendimento a enlutados, em São Paulo.
“A princípio eu ia fazer uma loucura, queria matar ele, a família, todo mundo”, diz o empresário Loudeber Castanho, 51, que perdeu a filha de 23 anos, assassinada a tiros supostamente pelo ex-namorado. O que o reteve e confortou foi “um lado espiritual” que a filha deixou. “Antes de morrer ela estava lendo ‘Somos todos Inocentes’, da Zíbia Gasparetto. Às vezes falava: ‘Pai, dá uma lidinha no que eu sublinhei. E eu, na correria, não dava atenção. Depois, transtornado, comecei a rastrear as frases e a decifrar o que ela queria me dizer. Descobri que o espírito não morre. Foi a única coisa que me acalmou”, diz.
Para superar o luto, é importante não sublimar a dor. “É para doer mesmo”, diz Maria Helena Bromberg. Faz bem à família se reunir para chorar, conversar sobre o assunto, olhar retratos. Os rituais também ajudam, porque a recuperação é centrada na aceitação. “O velório permite que as pessoas se despeçam e que o enlutado seja reconhecido como tal”, diz ela.
O período luto-casa dura cerca de dois meses. Aí cessam as visitas e a dor costuma piorar. É quando costuma ocorrer uma tentativa de resgatar o cotidiano anterior à perda, o que é impossível. A psicóloga Clarice Pierre diz ser importante, nesse estágio, se desfazer de objetos e roupas de quem morreu, e mudar hábitos. Muita gente muda de casa, de profissão, se engaja em uma causa.
Seis meses depois de perder a filha de 18 anos num acidente de carro, o casal Eduardo Carlos Tavares, médico, e Glaucia Rezende Tavares, psicóloga, se engajou na causa de amparo a enlutados. Criaram o grupo API -Apoio a Perdas Irreparáveis, que em um ano de existência reúne 37 casais, a maioria que perdeu filhos. Os encontros acontecem na casa de um dos integrantes, e são um espaço de expressão do luto. “Em muitas famílias, é tabu tocar no assunto. Mas à medida que falamos vamos nos transformando e ganhando força para retomar a vida. Depois de uma perda, ou a gente fica amarga, ou mais sensível. Nosso objetivo é adoçar a vida sem esquecer nem hipervalorizar a pessoa que se foi”, diz Glaucia. Em São Paulo, o Grupo Fraterno, criado por três mães que há quatro anos perderam os filhos no mesmo acidente, se reúne semanalmente para estudar a doutrina espírita, trocar experiências e promover trabalhos sociais. “No grupo, quem está melhor, puxa o outro”, diz Olga Braga de Araújo, 49, uma das mães. Os encontros chegam a reunir 80 pessoas.
De maneira geral, leva-se de um a dois anos para “elaborar a perda”, no jargão dos especialistas. Nesse período vão ocorrer pela primeira vez as datas importantes: aniversário, Natal… Se os sintomas de luto persistem, é provável que a pessoa não esteja vivendo as etapas necessárias à superação. Freud, no texto “Luto e Melancolia”, compara essas duas condições que encerram “o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo”. Só que, no luto, diz Freud, “é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Nos dois casos, existe uma oposição à realidade. Mas, no luto, “normalmente prevalece o respeito pela realidade”, ou seja: uma hora termina e a alegria se torna, ao menos, possível.
O processo considerado “anormal” pelos especialistas tem duas reações opostas: ou a pessoa não sai do luto (é a mãe que arruma o quarto do filho, cultuando o morto todos os dias) ou nem sequer entra nele (a pessoa fica indiferente, não chora, age como se não tivesse acontecido). Nesse luto “adiado”, a dor fica guardada em algum lugar “e um dia vem à tona”, diz Maria Helena Bromberg.
Morte e transformação
A perda traz mudança de valores. “As pessoas passam a ter menos medo de errar, entendem que têm limites e vivem melhor o presente”, diz a psicóloga Clarice Pierre.
Foi o que aconteceu com a decoradora Vitoria Herzberg, que há dez anos perdeu o filho Daniel, 18, de câncer. Ela diz ter passado por todas as fases do luto. “Ou você se envolve na vida, ou os vivos acabam desistindo de você.”
Depois de três meses, Vitória retomou seu trabalho com decoração, mas, em meio a uma polêmica com um cliente sobre o tom de amarelo que forraria um sofá, viu que aquilo não fazia mais sentido. Largou a profissão. Há nove anos se dedica a orientar pacientes com câncer e seus parentes. Vitória diz que até hoje não se conforma com a ausência do filho, mas aprendeu a conviver com ela. “Antes eu perguntava: Por quê meu filho?. Hoje eu pergunto: Quem sou eu para não ser comigo?”

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